sábado, 12 de novembro de 2016

A beleza e o vazio

Michele Müller

Construímos nossa identidade a partir da forma como nos relacionamos com os outros e com o mundo e, portanto, somos moldados pelas mesmas forças antagônicas que sustentam as interações humanas: inocência e culpa, amor e mágoa, entrega e insegurança. O desafio que a vida impõe é buscar o equilíbrio entre elas, o que começa pelo reconhecimento de que uma não existe sem a outra. 


Em algum momento dessa busca, depois que a primeira metade da vida já se alojou na memória, outras forças podem surgir com um significado novo e transformador: a beleza e o vazio. Não o belo que se opõe ao feio, que divide opiniões e vem com preço. Mas o que preenche cada espaço do coração, traz um breve conforto e sentido pra vida, e num instante vai embora.


O duelo entre a beleza e o vazio que ela deixa em sua passagem transitória tem poder de redirecionar nosso olhar sobre o mundo. A beleza a gente aprende a enxergar. Ela carrega o tempo em sua composição – e o tempo só começamos a compreender, de verdade, depois de uma certa idade: quando nos olhamos no espelho e "parecer mais velho" desperta uma sensação estranha; quando guardamos no armário de cima os brinquedos que nossos filhos mais gostavam; quando vivemos perdas suficientes para entender o valor da presença.


Qualquer mudança na relação com o tempo provoca mudança de perspectiva. Temos que aprender a equilibrar as novas forças que aparecem desse ângulo. Quando o vazio domina, pode vir o medo. Do desequilíbrio pode vir a necessidade de buscar novos refúgios ou uma preocupação excessiva com a imagem.


Mas se aprendermos a respeitar o tempo, a beleza revela seu verdadeiro poder. Aos 20, podemos concordar que uma flor é bela, mas aos 40, constatamos isso com emoção. O poeta e filósofo britânico David Whyte aborda essa capacidade de perceber atentamente os fascínios do mundo à nossa volta como uma forma silenciosa e profunda de gratidão.


Charles Gana Gibson
"Enxergar a essencialidade miraculosa da cor azul é ser grato sem a necessidade de encontrar palavras para agradecer. Enxergar toda a beleza existente no rosto de um filho é sentir-se plenamente grato sem necessitar de uma divindade para isso. Sentar entre amigos e estranhos, escutar vozes e opiniões, perceber a vida existente por baixo da superfície, habitar muitos mundos de uma só vez, ser alguém entre outros alguéns e poder conversar sem precisar dizer uma palavra são formas de aprofundar nosso senso de presença e, dessa forma, o reconhecimento que tudo o acontece nos envolve e ao mesmo tempo não depende de nós; somos ao mesmo tempo testemunhas e participantes. A gratidão encontra sua plenitude na generosidade da presença, tanto por meio da participação como da observação."
David Whyte em Consolations: the Solace, Nourishment and Underlying Meaning of Everyday Words 

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Sobre felicidade como objetivo

Michele Müller

Não nos contentamos com o necessário, perdemos noção do suficiente. Aprendemos que podemos ser quem quisermos, que tudo é possível, que todos limites podem ser expandidos. Mas é preciso tomar cuidado para que, nessa expansão, não percamos a felicidade de vista, ao lançá-la sempre para além do nosso alcance.


Para a escritora australiana Elizabeth Farrelly, ter mais e mais daquilo o que queremos – depois de ultrapassado o território da necessidade – não nos faz mais felizes, pois nos coloca em estado de eterna insatisfação. "Porque o desejo não é absoluto, a satisfação não é permanente e felicidade não é prazer". 




Robinson, William Heath
"Felicidade é um subúrbio elegante onde, em um nível individual, vive-se de forma criativa, construtiva e generosa. Mas tente replicá-la em grande escala, transforme-a em algo sagrado, faça dela o objetivo de vida universal, cace-a como se fosse um animal selvagem e ela rapidamente assume uma forma flácida, inautêntica, pouco atraente e profundamente autossabotadora".


Elizabeth Farrelly Autora de Blubberland: The Dangers of Happiness (*tradução minha)

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A fragilidade das certezas

Michele Müller

Herman Hesse escreveu, sobre o bom leitor: "ele sabe que para cada verdade há um oposto que também é verdade. Sabe que cada ponto de vista intelectual é um polo tão válido quanto o polo que está na outra extremidade".

Quem busca segurança nas verdades absolutas impõe barreiras para o próprio pensamento, restringe as possibilidades da vida a leis que se encaixam no nosso limitado intelecto. Mas o aparente conforto gerado pelas certezas costuma revelar sua fragilidade. Quando isso acontece, podemos continuar buscando novas certezas. Ou podemos nos apaixonar pelas belezas do mistério, buscar respostas fora do campo da razão e descobrir consolo na aceitação das próprias limitações. Dessa aceitação que partem muitos dos ensinamentos da sabedoria oriental, primorosamente apresentada ao Ocidente pelo filósofo Alan Watts:


Ilustração: Robinson William Heath: Make Him Break His Faith

"Pensamos que trazer sentido para a vida é impossível a não ser que o fluxo de eventos possa de alguma forma se encaixar em uma moldura rígida. Pensamos que para ser significativa, a vida precisa ter leis e ideias que sejam inteligíveis e que, ao mesmo tempo, correspondam a realidades eternas e imutáveis encontradas atrás dos cenários transitórios. Se isso representa o sentido da vida, nós nos impusemos a tarefa impossível de construir rigidez a partir da fluidez".
Alan Watts - The Wisdom of Insecurity (tradução minha)

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

As possibilidades que o amor desperta


Michele Müller

"A inspiração é uma visita que sempre chega de surpresa", escreveu o filósofo e poeta irlandês John O'Donohue em sua mais conhecida obra, Anam Cara (Amigo de Alma), repleta de pensamentos moldados pela riqueza imaginativa celta. Mas para isso, precisamos deixar uma porta aberta – o que requer atenção ao que está dentro e fora de nós. 

O reconhecimento e a valorização da beleza e de tudo o que ela nos ensina é, sem dúvida, um convite a essa visita sempre bem-vinda. E poucos escreveram de forma tão fascinante sobre a beleza que envolve os mistérios da vida. Seus escritos, portanto, são um chamado à inspiração, a um olhar mais atento e mais presente para os encantos do mundo que nos cerca.
" Todas as possibilidades de seu destino permanecem adormecidas na sua alma. Estamos aqui para perceber e realizar essas possibilidades. Quando o amor entra em sua vida, dimensões não reconhecidas de seu destino acordam e florescem. A possibilidade é o coração secreto do tempo".

"O coração é a face interna da vida. A jornada humana luta por mostrar a beleza dessa face. E é aqui que o amor se encontra em nós. O amor é absolutamente vital para a vida humana. Apenas ele pode acordar o que há de divino em nós. Quando aprendemos a amar e a nos deixar ser amados, voltamos para o coração de nosso próprio espírito. Ficamos protegidos e aquecidos".

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Sobre convicção e mudança

“Eu me contradigo? Pois bem, então me contradigo. Sou amplo, contenho múltiplas dimensões”, escreveu Walt Whitman em um de seus mais aclamados poemas. Virgínia Woolf também nos coloca em confronto com as grades erguidas pelo pensamento rígido e pela nossa interpretação das expectativas alheias. No ensaio "Montaigne" (1924), em que discorre sobre o pensador francês, ela lembra que a contradição é a condição básica do pensamento livre e da escrita autêntica.

 "Deixemos ir embora a fama, as honrarias e todos os cargos que nos deixam em obrigação para com os outros. Deixemo-nos fervilhar sobre nosso incalculável caldeirão a nossa enfeitiçadora confusão, nossa miscelânea de impulsos, nosso perpétuo milagre – pois a alma vomita maravilhas a cada segundo.
Movimento e mudança são a essência do nosso ser; a rigidez é a morte; o conformismo é a morte: vamos dizer o que nos vem à cabeça, vamos repetir, nos contradizer, deitar fora o mais insensato dos absurdos e seguir as mais fantásticas fantasias sem nos importarmos com o que o mundo faz ou pensa ou diz. Pois nada importa a não ser a vida e, naturalmente, a ordem".